Valdir Aguilera
 Físico e pesquisador

 

 

As 1001 noites - O cádi-mula e o cobrador de impostos

Contam, ó afortunado rei, que vivia antigamente numa das cidades do Egito um cobrador de impostos cuja profissão obrigava-o a ficar muito tempo fora de casa. Sua esposa não hesitou em aproveitar as freqüentes ausências e arrumou um amante lindo como a lua.

Certo dia, o marido da moça arreou sua mula para ir cobrar impostos. E pediu à mulher para preparar-lhe provisões para a viagem. Impaciente para vê-lo partir, a mulher pôs-se imediatamente ao trabalho, mas constatou que faltava pão. O marido ofereceu-se para ir buscá-lo na padaria. Enquanto o marido estava comprando pão, surgiu o amante, pensando que já tinha o campo livre. Chegou, gritando que precisava na hora de trezentos dinares.
– Meu amor, não disponho dessa importância nem sei onde consegui-la assim de imediato.
– Mas eis a mula, minha amada, insistiu o jovem. Dá-me a mula. Poderei vendê-la por trezentos dinares.
– Enlouqueceste? Quando meu marido voltar e não encontrar a mula, que fará senão bater em mim?

Mas o amante soube usar argumentos que levaram a moça a aceitar o risco de apanhar. Entregou a mula, tendo, contudo, o cuidado de ficar com os arreios.
Ao voltar com o pão, o marido foi ao estábulo para carregar a mula e só encontrou o elmo pendurado num prego e a sela jogada por cima do feno. Gritou para a mulher: "Onde está a mula?" Ela respondeu: "Acaba de sair. Parou na soleira e me disse que iria administrar a justiça no tribunal."
– Ousas brincar comigo, berrou o marido, levantando a mão. Não sabes que posso esmagar-te com um só golpe?
– O nome de Alá esteja sobre nós dois, retrucou a mulher sem se perturbar. Por que brincaria contigo? Por que iria enganar-te? Mesmo que tentasse fazê-lo, como conseguiria, sendo tu tão perspicaz e astuto e bem mais inteligente que eu? Mas devo confessar-te um segredo que não te revelei antes por medo de atrair alguma desgraça sobre nós: a mula é enfeitiçada e, às vezes, transforma-se num cádi.

– Ora! Ora! cantou o cobrador, rindo. Encontra algo melhor.

Mas a moça cortou-lhe a palavra, dizendo: "A primeira vez que vi um homem estranho sair de nosso estábulo, entrei em pânico, cobri o rosto com uma dobra de meu vestido e preparava-me para fugir quando ele se aproximou de mim dizendo numa voz grave e educada: 'Fica calma, minha senhora. Eu não sou um estranho. Sou a mula de teu marido. Por natureza, sou um ser humano, um cádi. Fui transformado em mula por certos inimigos maldosos, adestrados na magia. Mas sendo assim mesmo bons muçulmanos, deixam-me vez ou outra retomar minha forma humana e ir ao tribunal exercer minhas funções. É meu destino viver ora como cádi, ora como mula, até que Alá, na sua infinita bondade, quebre o feitiço e me liberte de meus desafetos. Bondosa ama, rogo-te, em nome de teus próprios pais, nada contes a teu marido, o cobrador de impostos, porque, sendo um homem íntegro e religioso, se vier a saber que possui uma besta enfeitiçada sob seu teto, será capaz de querer livrar-se de mim e talvez me venda a algum agricultor que me sobrecarregue de trabalho da aurora ao crepúsculo, alimentando-me com feijão podre. Eu não aguentaria isso, depois de me ter habituado aos modos generosos e distintos de teu marido. Mais uma coisa, bondosa ama: rogo-te solicitar ao nobre cobrador de impostos que não me pique o traseiro quando está com pressa, porque sou muito sensível naquela parte do corpo.' Tendo assim falado, nossa mula, isto é, o cádi, foi para o tribunal onde poderás encontrá-lo. Minha opinião é que não o vendas, mas o reconquistes com jeito, porque ele é não somente um animal sóbrio que nunca solta ventosidades, como é também um jurista que poderá dar-te bons conselhos quando vieres a precisar deles."
– Por Alá, esta é mesmo uma história estranha. Mas, não mencionou ele quando voltaria? Preciso ir recolher impostos em tantas cidades...
– Não, não mencionou hora alguma. Mas se aceitas uma sugestão minha, apesar de seres bem mais capaz que eu, sugerir-te-ia ir ao tribunal com um punhado de feijão na mão e fazer sinais ao cádi, de longe, de que precisas de seus serviços de mula. Como ele tem o senso do dever, e também porque gosta de feijão, deixaria sua cadeira de cádi e seguir-te-ia até a casa.
- Tu és mesmo uma mulher engenhosa, exclamou o homem. Seguirei tua sugestão.

Chegando ao tribunal, o cobrador de impostos colocou-se atrás dos querelantes, com um punhado de feijão na mão, e começou a fazer sinais ao cádi. O cádi o reconheceu como chefe dos cobradores de impostos e supôs que tinha alguma mensagem urgente a lhe transmitir. Deixou o tribunal e seguiu-o. Quando os dois estavam já bastante afastados, o cobrador de impostos inclinou-se e sussurrou ao ouvido do cádi:

– Por Alá, fiquei penalizado ao saber de teu infortúnio. Não te zangues porque vim procurar-te. É que tenho várias cidades a visitar e não podia esperar o fim dos julgamentos. Por favor, vira mula tão rápido quanto puderes, pois já é tarde demais.

O cádi recuou com horror. Para tranquilizá-lo, o cobrador de impostos tomou um tom mais amável:

– Juro por Alá que nunca mais te picarei no traseiro, sabendo que és particularmente sensível naquela parte do corpo. E oferecer-te-ei uma dupla ração de feijão à noite.

O cádi já estava certo de que lidava com um louco perigoso, fugido de algum manicômio. Vendo que não havia ninguém por perto para socorrê-lo, preferiu tomar o caminho da persuasão e disse suavemente:

– Prezado amo, lamento não poder me libertar agora do tribunal. Mas toma esses trezentos dinares e vai comprar uma mula que possa atender às tuas necessidades.
E deu trezentos dinares ao homem, calculando que poderia recuperá-los, cobrando taxas duplas dos querelantes. O cobrador de impostos foi ao mercado das mulas e, enquanto procurava uma mula para comprar, reconheceu a sua, e ela também o reconheceu e pôs-se a zurrar. Mas o homem sentiu-se ofendido diante de tamanha ousadia e replicou: "Por Alá, nunca te comprarei outra vez. Preciso de uma mula que seja sempre mula. Uma mula que é ora mula, ora cádi, não me convém." E comprou por trezentos dinares uma mula melhor que aquela.

Assim, todo mundo saiu satisfeito: a mulher que recebeu em carinhos do amante o valor da mula, o amante que resolveu seu problema com os trezentos dinares, o marido que obteve uma mula melhor que aquela que possuía, e o cádi, que escapou do perigo e recuperou os trezentos dinares, dobrando as taxas cobradas.


 

De "O cádi-mula e o cobrador de impostos" para "Biblioteca"

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